Meu caro amigo leitor
Vou lhe escrever a verdade
Antes existia mais amor
Hoje só tem falsidade
Quando vinha o anoitecer
A gente tinha o prazer
De ficar com nossos pais
Ouvindo história de trancoso
Aquilo era tão gostoso
Coisa que não existe mais.
As casas cobriam de palha
Com as paredes de barro
Nos buracos nascia lacraia
No jardim não tinha jarro
Um pé de periquito na sala
O garda roupa era uma mala
Era o tempo de nossos pais
Moravam dentro das grutas
Comiam papa de araruta
Coisa que não existe mais.
Moravam em cortiços
Uma vida de muita luta
Era grande o sacrifício
Redes de saco de açucar
As vezes na madrugada
Essa rede se rasgava
Ficavam no balança mais não cai
Quando chovia tudo molhava
Mas a gente se amava
Coisa que não existe mais.
Era num prato de barro
Que botava o alimento
Batata e peixe assado
Era a comida do momento
Quando o peixe não vinha
O mano matava uma galinha
Mandado por nossos pais
Ele era bom na espingarda
De um tiro só derrubava
Cosa que não existe mais.
Altas horas da madrugada
Encarava o orvalho
Meu pai nos acordava
Para buscar os animais
Saíamos feitos loucos
Por cima de pedra e toco
Um na frente outro atrás
Nos cavalos agente montava
Cavalgava até nossa casa
Coisa que não existe mais.
Banhava o cavalo no rio
Papai preparava o café
Ao animal dava o milho
Esperava Antônio José
As seis horas ele chegava
Ao sairmos de casa
A ordem de papai
Não esqueçam a comida
Assim era nossa vida
Coisa que não existe mais.
Perdi mamãe com doze anos
Partiu quem mais me amava
Meu pai não tinha outro plano
A não ser o cabo da enxada
Enfrentamos cinco madrastas
Mamãe fez muita falta
Acabou assim a nossa paz
A nossa mãe querida
Um adeus por despedida
Coisa que não volta mais.
Deixei meu pai com 15 anos
Fui trabvalhar na Santana
Foi um grande desengano
Viver da palha da cana
Enfrentei grande desafio
Fui trabalhar com um tio
De nome Francisco Morais
Gostava de ouvir cordel
Que falasse de coronel
Coisa que não existe mais.
Sinto falta do passado
Das belas noites de luar
Quando chegava do roçado
Íamos logo conversar
Falar de assombração
Era como tradição
Os filhos pertinho dos pais
A noite era calma e fria
Mas era grande a alegria
Coisa que não existe mais.
Viviámos num fiasco
Nos faltava alimentação
A rede cheia de buraco
A perna arrastava no chão
Não tinha mosquiteiro
Apaga menino o candeeiro
Para economizar o gás
As muriçocas nos picavam
A gente se conformava
Coisa que não existe mais.
A mesa que recebia comida
Era em cima dum caixão
Assim era nossa vida
Precária alimentação
Uma visão otimista
Andava em cima da pista
Todos vivíamos em paz
Não existia malandragem
Só trabalho e coragem
Coisa que não existe mais.
Quem vivia na praia
Comia da pescaria
Quando pescava uma arraia
Comia todos da família
Quando pescava camarão
Vendia pra comprar feijão
Era assim tempos atrás
Saía na madrugada
Nada pra família deixava
Coisa que não existe mais.
Houve dias que não tinha
Mistura pra gente comer
Mamãe misturava farinha
Com azeite de dendê
Saciava nossa fome
Também tinha inhame
Mas puro era ruim demais
Carne só duas vezes ao ano
Nossa bola era de pano
Coisa que não existe mais.
Naquele tempo passado
Tinha pouca prostituição
Um povo comportado
Com melhor reputação
Hoje o mundo tá virado
É um povo desordenado
Não respeita mais os pais
Antes era diferente
O povo era mais decente
Coisa que não existe mais.
Quem não tinha geladeira
Bebia água num cabaço
Descia e sobia ladeira
Pra chegar num riacho
Buscar um pote d’água
Voltava acabado
Pois era longe demais
Mamãe fazia calos nas mãos
Batendo café num pilão
Coisa que não existe mais.
Lembro o peixe bacalhau
Era envolto em barricas
Recordo o bacurau
Quando ia pra Santa Rita
Tinha o pau de arara
Também da cama de vara
Arupema, peneira e Balaio
Todos feitos de japecanga
O patrão cobrava conga
Coisa que não existe mais.
O povo andava a pé
Enxugava mão na rodilha
O copo era cuia de cuité
O pote ficava na furquia
Pobre não tinha fogão
Acendia o fogo no cháo
A noite jogava baralho
De preferência sueca
Já tinha a pareia certa
Coisa que não existe mais.
Não podia pisar na água
Quando se comia pirão
Logo a boca entortava
Diziam que era o cesão
Aconteceu com minha mãe
Quando atendeu Antônio
Que chegava dos matagais
Com o tempo ela morreu
Foi morar perto de Deus
E não voltou nunca mais.
Meu pai fazia uma fogueira
Trazia milho do roçado
E a gente a noite inteira
Comendo milho assado
Soltando bomba e balão
Celebrando o São João
Junto com nossos pais
Ouvindo um bom folhete
Ainda tinha café com leite
Coisa que não existe mais.
Agente morava na fazenda
Todos pagavam uma diária
A escola não tinha merenda
No rio tinha malária
Era grande o desespero
Para gente ganhar dinheiro
E ajudar nossos pais
Transportava madeira
Também armava ratoeira
Coisa que não existe mais.
Era um povo decente
Mas com pouca noção
Não escovava os dentes
Por falta de orientação
Enfrentava desafios
Só tomava banho de rio
Ao espirrar dizia São Braz
Nas porteiras se benzia
Rezava pai nosso e Ave Maria
Coisa que não existe mais.
Se comia beiju de massa
Feito em casa no caco
Com talambica de batata
Comia até genipapo
O peixe primeiro era assado
Para fazer o ensopado
Hoje pouca genta faz
A gente dormia na mata
Cantava altas serenatas
Coisa que não existe mais.
No meu tempo de criança
Só duas roupa pra vestir
Nunca sai da lembrança
Tinha nenhuma pra dormir
Dormia com um calção
Ou cueca samba canção
Escutando o papagaio
Lá da casa do vizinho
Era lindo o passarinho
Coisa que não existe mais.
O povo antigamente
Levava a vida sofrida
Não havia medicamento
Nem pra dor de barriga
Era grande o desespero
Também faltava dinheiro
Pra comprar o gás
Além de comer no puro
Anoitecia no escuro
Coisa que não existe mais.
Meu tio dizia Manoel
Hoje não vai pinotar
Quero que leia um cordel
Para a gente escutar
O Pavão Misterioso
Por ser muito amoroso
Então o João de Calais
Não tava no meu querer
Eu tinha que obedecer
Coisa que não existe mais.
Lembro da capelinha
Na casa que eu morava
Minha vó já velhinha
Um lindo terço rezava
Pai nosso e ave maria
E a família respondia
Dizia daqui ninguém sai
Antes da nossa oração
Joelhada no chão
Coisa que não existe mais.
Na hora de comer
Todos tinham que rezar
Era nosso dever
Antes mesmo de sentar
Para agradecer a Deus
O pão que Ele nos deu
Imitar nossos pais
Sempre seguir a lei
Todos tinham sua vez
Coisa que não existe mais.
O tempo de namorar
Era uma grande alegria
Ruim era enfrentar
Um menino como vigia
Tratava ele com carinho
Dando-lhe um dinherinho
Pra ele nos deixar em paz
Ele ia comprar bagana
Cansado dormia na lona
Coisa que não existe mais
A casa não tinha segurança
Fechava com corda e pau
Mas a gente tinha confiança
Ali ninguém fazia o mal
Coco de roda e capoeira
Era as únicas bricadeiras
Herança dos nossos pais
Do barro fazia a panela
Para cozinhar nela
Coisa que não existe mais.
Era da palha de coqueiro
Que vinha nossos brinquedos
A gente não tinha dinheiro
Isso não era segredo
Não comprava carrinho
Mas recebia carinho
Da mamãe e do papai
Nunca sai da lembrança
Meu tempo de criança
Coisa que não existe mais
Pai e seus calçados
Feitos com pneu de trator
Ao chegar do roçado
Não aguentava de dor
A alpercata muito pesada
Assim mesmo ele andava
No mato a frente e atrás
Dava pena quando chegava
Com a roupa toda molhada
Coisa que não existe mais.
Criança não estudava
Não tinha oportunidade
Nossos pais reclamava
Daquela crueldade
Filhos sem educação
Aquilo doía o coração
Esse tempo nunca mais
Papai aprendeu sozinho
Eu segui o mesmo caminho
Coisa que não existe mais.
Fazia óleo de batibutar
E farinha de castanha
Existia abano, caçuar
Era um povo de vergonha
Ordem tinha nas escolas
Não andava de bunda de fora
Nossa terra tinha paz
Todos tinham que trabalhar
Trabalho ajuda a educar
Coisa que não existe mais.
Trabalhei numa fazenda
De nome Usina Santana
Todos homens e mulheres
Cultivavam a cana
O almoço era farinha
Com um pedaço de sardinha
A ordem vinha do capatais
O povo reclamava mas comia
Labutar 10 horas por dia
Coisa que não existe mais
Pobre comia gerimum
Com coco fazia talambica
Se comia até gia brum
Assada, torrada e frita
Não se via a cor do pão
Carne só no São João
Não falava em dia dos pais
Nem também das crianças
Dia das maẽs só lembraça
Coisa que não existe mais.
Hoje tá tudo diferente
Criança pode estudar
Se for mesmo inteligente
Consegue se formar
Tem esporte e merenda
É diferente das fazendas
Daquele tempo atrás
Em terra de usineiro
Maior valor era o dinheiro
Coisa que não existe mais.
